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Mar 24, 2020

Por uma habitação colaborativa em Portugal

written by etscha

Artigo publicado na Revista Punkto, a 15 de Março de 2018

A última década provou que o co-housing (co-habitação) deixou de ser algo só para hippies escandinavos dos anos setenta! Em vários países da Europa, assiste-se ao ressurgimento da chamada habitação colaborativa (iniciativas de co-housing, cooperativas de habitação, habitação participativa, entre outras), como resposta à falta de ‘habitação acessível’ (uma questão inicialmente destinada aos mais carenciados, mas que passou a incluir a classe média), à progressiva redução do apoio financeiro público para a produção de habitação, e às recentes transformações económicas e sociodemográficas.

Veja-se a experiência participativa e o sistema de co-propriedade dos Baugruppen na Alemanha e na Áustria; as recentes cooperativas de habitação em Espanha baseadas no modelo nórdico Andel (no qual o residente, não sendo inquilino nem proprietário, tem o direito ao uso da habitação por tempo indeterminado); ou o actual movimento Habitat Participatif em França. Estes são exemplos de iniciativas inovadoras levadas a cabo por grupos de cidadãos (e muitas vezes pelos próprios arquitectos) que resolveram mostrar o dedo do meio ao mercado imobiliário tradicional e à sociedade cada vez mais individualista. Deste modo, e através de sistemas de financiamento alternativos (bancos cooperativos, campanhas especiais de empréstimo ou plataformas de crowdfunding), estas “comunidades intencionais”, [1] organizadas em cooperativas, associações ou até mesmo em empresas, projectam, constroem (ou reabilitam) e gerem o seu complexo habitacional colectivamente e sem intermediários, de um modo mais económico, ambientalmente mais responsável, e mais adequado às necessidades de cada um. Resumidamente, estamos a falar de co-projectoe co-gestão de edifícios de co-housing.

Estas tendências podem também ser fruto da crescente expansão da chamada ‘economia colaborativa’ que tem vindo gradualmente a alterar as noções de ‘propriedade’ e a substituí-las pela ideia de ‘acesso’ e de ‘partilha’; e reflexo do desejo de muitas pessoas de recuperar uma certa ideia de simplicidade, possível consequência dos excessos do período pré-crise, através de uma postura mais “ascética” e sustentável em relação à vida e ao consumo, na qual “menos é suficiente”. [2]

Em termos arquitectónicos, este modelo obriga ao repensar do layout doméstico tradicional e à consequente formulação de novas tipologias habitacionais. A minimização do espaço individual para maximizar os espaços colectivos promovendo a interacção entre residentes; a introdução de instalações comuns (lavandarias, oficinas, cozinhas comunitárias) reduzindo não só as áreas mas, também, o consumo energético; a construção faseada (abordagem relacionada com a chamada “habitação evolutiva”, largamente explorada nos anos setenta em países da América Latina, correspondendo a uma habitação mínima flexível, onde uma área potencial é deixada para expansão futura, dependendo das necessidades e possibilidades económicas do agregado familiar) e a decisão colectiva de deixar algumas superfícies ‘inacabadas’ para posterior acabamento são algumas das características comuns deste novo tipo de habitação colaborativa a custos controlados. Tudo isto exige uma compreensão da arquitectura, não como um “produto acabado”, mas sim como um processo dinâmico. Em termos sociais, este conceito procura estimular o sentimento de ‘comunidade’, ‘vizinhança’ e ajuda mútua. Ao mesmo tempo, este modelo valoriza a participação dos futuros residentes no desenho arquitectónico do projecto e às vezes na própria construção, através de estratégias ‘DIY’ (Do-it-yourself) e ‘DIT’ (Do-it-together), e na gestão e manutenção do complexo habitacional.

Bem sabemos que nada disto é novo. Já todos ouvimos falar de “habitação mínima”, “processos de participação”, “espaços comunitários”, “habitação evolutiva”, mas é na combinação destas abordagens com o reconhecimento da necessidade de adaptação às novas tendências e exigências da sociedade urbana atual que reside a inovação deste modelo habitacional alternativo. Este permite a personalização do espaço doméstico, promovendo não só um “sentido de pertença” mais forte, mas também uma forma de ter acesso a uma habitação de qualidade a um custo reduzido, uma vez que as decisões colectivas sobre o projecto arquitectónico, sobre os métodos e as fases de construção (ou reconstrução) e a posterior autogestão podem ter um grande impacto na redução dos custos da habitação (e no próprio custo de vida). Podemos concluir que a habitação colaborativa é uma solução bastante plausível para o cidadão urbano contemporâneo.

Debrucemo-nos agora no território nacional. A provisão de ‘habitação acessível’ é finalmente aclamada como prioridade do Governo e vários programas de habitação e de reabilitação urbana têm surgido nos últimos tempos. Dito isto, onde podemos então encontrar iniciativas urbanas de ‘habitação colaborativa’ em Portugal, que tão bem se encaixam no actual contexto que vivemos, ainda no rescaldo da crise? Pois bem, não os há. No máximo, encontramos os restos (alguns mortais) das experiências pós-revolução do SAAL. Se se trata de um modelo com todo o potencial para ser explorado, porque razão não se fala dele em Portugal? É falta de conhecimento por parte dos cidadãos? É falta de iniciativa por parte dos arquitectos, esses poetas do espaço, que já há muito abandonaram a sua consciência social? É falta de incentivo e acção por parte do governo e dos municípios, que com tanto património devoluto à sua mercê, não são capazes de promover sistemas alternativos de ocupação?

Se o co-working já “pegou” em Portugal, já é altura de fazer algo para que o co-housing venha para ficar. Ou vamos ter que esperar que venha um grupo de hipsters berlinenses iniciar um co-housing na Rua das Flores, para que se torne moda e seja giro viver em comunidade? Não, tem que surgir de uma necessidade natural. E essa necessidade já existe. Económica e social. Há falta de habitação a custos acessíveis. Para juntar à festa, o aumento descontrolado do turismo nas grandes cidades faz com que muitos portugueses sejam expulsos das suas casas no centro, para se poder ter mais um Airbnbzito castiço (e caro) em pleno bairro da Mouraria. [3] Temos, por um lado, uma população cada vez mais idosa e isolada e, por outro, uma população jovem cada vez mais ausente, por se ver obrigada a emigrar. Tudo isto destabiliza a dinâmica convencional dos centros urbanos e transforma a estrutura “tradicional” da família: o que por sua vez deverá traduzir-se em novos modos de habitar. Lanço aqui o apelo:

1. Aos arquitectos, que devem tornar-se mais dinâmicos e renovar o compromisso social da sua profissão, sem se sentirem travados pela inércia burocrática das próprias instituições que os deviam incentivar. [4] Este tipo de processo é muitas vezes iniciado por arquitectos juntamente com a comunidade interessada, sem a necessidade de intervenientes e através de planos de financiamento alternativos.

2. Aos cidadãos, que devem organizar-se em associações ou cooperativas para deste modo discutirem em conjunto possíveis alternativas ao stock de habitação existente, mais económicas, livres das oscilações do mercado, mais personalizadas e que promovam uma maior interacção social. Além disso, o envolvimento dos residentes em processos de projecto é crucial para assegurar uma construção mais consciente e económica, adequada às suas necessidades e de acordo com as prioridades definidas.

3. Aos municípios, que devem criar as condições para facilitar e agilizar estes processos de projecto e construção de habitação colaborativa. Aproveitar a lufada de ar fresco da recém (re)criada Secretaria de Estado da Habitação e da “nova geração de políticas de habitação” para realmente renovar e inovar em termos de legislação associada à habitação colectiva. Promover um conjunto de incentivos fiscais e facilitar o acesso aos terrenos e aos imóveis obsoletos. E organizar workshops e sessões informativas sobre o potencial deste modelo de habitação.

Chegou a altura de voltar a considerar as ideias cooperativistas da experiência SAAL como ponto de referência para novas soluções e não como peça estática de museu. E, do mesmo modo que exemplos de Berlim, Barcelona ou Paris nos podem servir de inspiração neste momento, que num futuro próximo sejamos nós a influenciar outras comunidades. Temos os ingredientes todos, a receita, os instrumentos básicos, já só falta mesmo juntar tudo e “meter as mãos na massa”!

Imagens

1. Coop Housing Spreefeld, Berlin (fonte: archdaily). 2. Cooperativa La Borda, Barcelona. 3. Cooperativa Sostre Civic, Barcelona. 3. Jardin Divers, Montreil. 4. Le Grand Portail, Nanterre. 5. R50 Baugruppe, Berlin (fonte: archdaily).

Referências

[1] Jarvis, H. (2011). Saving space, sharing time: integrated infrastructures of daily life in cohousing. Environment and Planning A 2011 (43), pp. 560-577.

[2] Aureli, P. V. (2016). Menos es suficiente. Barcelona: Editorial GG.

[3] https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/mouraria-quer-expulsar-familias-portuguesas-para-dar-as-boas-vindas-aos-turistas-125320

[4] Veja-se o exemplo da criação da Bolsa AVAE (promovida pela Ordem dos Arquitetos) que, logo após o incêndio de Pedrogão em Julho de 2017 previu a criação de grupos de arquitectos voluntários para a reconstrução habitacional e urbana das zonas afectadas pelo incêndio. Esta iniciativa, aparentemente tão dinâmica e “de emergência”, após dois meses da sua criação, ainda não entrou em acção. Nem os grupos de trabalho foram formados.